Veio com a esposa, ambos simpáticos, cultos, educados, britânicamente contidos, falando em inglês entremeado ocasionalmente com algumas palavras, muito poucas, em português com um sotaque típico. Disse-lhe que precisava de ser operado, e perguntei-lhe se para isso não preferiria ir a Inglaterra. Respondeu-me, naturalmente em inglês: "Doutor, eu tive um AVC e ao fim de meia hora estava a ser tratado - tratado, veja bem - neste hospital. No meu país isso não seria possível! Por isso é aqui que quero continuar a ser tratado. É neste hospital que eu quero ser operado."
E foi. Fez-se-lhe endarterectomia carotídea esquerda, sem intercorrências ou complicações, esteve internado quatro dias. Voltou passado um mês, em consulta de controlo pós-operatório. Sempre acompanhado pela esposa, sem sequelas evidentes de AVC, bem dispostos os dois. Exibe a cicatriz cervical, "You did a great job here" - afirma. Prescrevo o clopidogrel, conversamos, conversa rápida de consultório, o tempo (claro, ou não fosse ele inglês!), a política europeia, a crise, o euro. Levantamo-nos, depois de me despedir da esposa estendo-lhe a mão. Aperta-ma com a sua e diz, com alguma tremura no porte fleumaticamente britânico: "You know, if I lived in my country I would be dead now. Portugal saved my life. Obrigado."
Podem crer que no momento fiquei emocionado. Disfarcei o melhor que pude, acompanhei-os à porta do gabinete. É destes momentos - pessoais, como este, ou apenas conhecidos através de outros - que se constrói o enorme prazer de ter a nossa profissão. Basta o sentimento íntimo de ter feito um bom trabalho, e que acabou bem, frequentemente reconhecido por colegas e, às vezes, se calhar não muitas, pelos doentes. Mas este caso teve um sabor muito especial, porque foi a opinião de um paciente estrangeiro esclarecido, que não fala por ouvir dizer, com possibilidade de estabelecer comparações e de escolher, e que deu fortemente preferência ao nosso Serviço Nacional de Saúde e aos nossos hospitais.
Um SNS sob ataque de há vários anos para cá, em processo de descaracterização, de restruturação que parece uma desestruturação, de redução, e eliminação. Um SNS que trabalhava bem. Aquele doente inglês, ao pôr frontalmente em causa o National Health Service, fala obviamente do NHS de agora, depois da governação da Mrs. Thatcher. Depois das restruturações, descaracterizações, fusões e eliminações que sofreu, muito na senda do que tem vindo a ser feito por cá. Não do NHS que serviu de exemplo ao Mundo, e até deu o nome ao nosso. É claro que o nome manteve-se, o serviço também, mas não são nada do que eram, e os doentes sabem disso. Continua a haver grandes médicos e óptimas instituições médicas na Grã-Bretanha, mas já não são o NHS que costumava ser. E todo o esquema de assistência se ressentiu disso, agora que nos Serviços médicos dos hospitais públicos por lá há pessoal administrativo que toma parte em decisões que deveriam ser puramente clínicas. A minha emoção ao ouvir o desabafo do paciente inglês tratado em Portugal, deveu-se também à pena de termos entre nós algo de bom durante tanto tempo e os nossos doentes tantas vezes não o apreciarem devidamente, e estarmos se calhar a resvalar no sentido de a perder.
Mudar por mudar, não. Em equipa que ganha não se mexe, diz o povo e o bom senso. Em momentos de crise há frequentemente a fraqueza, por parte dos dirigentes menos esclarecidos, de mudar para ver o que é que dá, sem o discernimento de atender ao que está bem e assim o manter. É claro que mais tarde ou mais cedo virá a exigência de responsabilidades, e a exposição pública do mal que foi feito e de quem o fez, mas em geral tarde demais para o corrigir. E Portugal não pode dar-se ao luxo de deixar destruir o pouco que dentro de si funciona bem. A Saúde é um exemplo disso, e um exemplo para o estrangeiro, e matéria em que não se deve querer copiar o que vem de fora.
Carlos Costa Almeida
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